sábado, 23 de janeiro de 2016

Miradouros: Cabo Espichel, o lugar dos deuses


Para cima, o perfil escuro de Sintra corta o céu brilhante e meio rosa. À nossa frente e para sul, o horizonte em linha pura aguarda a queda do sol naquele dia tão limpo. A nossos pés, placas verticais de pedras imensas encostadas umas às outras eram batidas pelas ondas, pela espuma e pela força do mar. Era o oceano Atlântico azul infinito, e temeroso para os povos vindos do Mediterrâneo.
Senti que este era um sítio dos deuses, ou melhor, um ponto em que os deuses se ligavam aos homens, era um lugar sagrado como o temenos grego, marcado no terreno por muros, dentro dos quais se construíam os templos para onde os homens convocavam os deuses. O cabo Espichel é também o Finisterra dos romanos, o fim da terra e o princípio do mistério do mar. Não admira que este miradouro natural tenha sempre suscitado práticas religiosas que deixaram marcas construídas no planalto ventoso que cai a pique sobre o mar.
No cabo Espichel, durante a Idade Média, surge um culto à Nossa Senhora da Pedra Mua com início conhecido de peregrinações em 1366. A palavra mua é uma corruptela da palavra mula, que vem da seguinte lenda: “Dois idosos, um de Alcabideche e outro da Caparica, sonharam com uma luz a brilhar no cabo Espichel que a Virgem lhes recomendara seguir. Ambos se puseram a caminho seguindo a misteriosa luz que continuava a brilhar todas as noites. Quando chegaram ao cabo ficaram maravilhados ao verem a imagem da Virgem Maria montada numa mula que subira a escarpada arriba deixando nas pedras as marcas das suas patas.” Destes tempos resta-nos a ermida da Memória (1428) de arquitectura mudéjar, enigmática marca islâmica que foi ficando neste promontório sagrado.
A subida que podemos fazer hoje à “escarpada arriba” a norte do Cabo revela-nos a razão desta atribuição divina que deixou “nas pedras as marcas das suas patas”. As placas calcárias quase verticais desta elevação foram escorregando e numa delas apareceram pegadas de dinossauros perfeitamente marcadas e visíveis que foram atribuídas à mula que transportava a Nossa Senhora até ao alto do cabo Espichel. Quase pedimos desculpa por estragar o mito e o culto com esta trivial explicação científica, mas como só no século XX foram identificadas os rastos dos dinossauros, durante seis séculos o culto foi enraizando e tomando conta do lugar. O culto a Nossa Senhora do Cabo baseia-se num sistema anual de rotação da imagem de Nossa Senhora, que passa um ano em cada uma das 26 freguesias do Círio Saloio, mantendo-se assim o “giro das freguesias” que se encontravam no cabo Espichel para a entrega da imagem e alfaias, durante a semana da Ascensão. Sacralizou-se assim este santuário e nele restam as marcas construídas e paira a memória de uma devoção sentida e muito festejada.
Para louvar a Deus, pedir e agradecer à Nossa Senhora do Cabo, foram sendo ritualmente mantidas peregrinações que traziam a imagem de Belém, atravessavam de barco e faziam em procissão todo o areal da Costa da Caparica. Subiam ao cabo e as orações e músicas acompanhavam-se de grandes festas profanas com bailes e romarias, touradas e até óperas.
De toda essa efusão humana ficaram construções sólidas e de uma simplicidade desarmante pela força que a arquitectura popular consegue concentrar. Dois corpos paralelos de um andar, suportados por arcarias de pedra, deixam a meio o vazio de um terreiro amplo — o arraial — rematado pela fachada da igreja barroca. Felizmente que os arquitectos dos anos 1950/60 fizeram o inquérito e o inventário da arquitectura popular pois registaram, desenharam e ajudaram a preservar esta arquitectura sem arquitectos, esta vasta categoria de construções “anónima, espontânea, indígena e rural” e tão bem adaptada ao local. Servia este renque de casas para hospedar os peregrinos que todos os anos os círios da região saloia organizavam para vir pedir a bênção da Nossa Senhora do Cabo, receber e entregar a sua imagem e depois festejar uns com os outros, neste local sagrado.
A partir de 1701, quando o Rei D. Pedro II se vem juntar aos peregrinos e reconstrói a primitiva ermida do tempo de D. Manuel, torna-se este santuário no primeiro centro de peregrinações que, mais tarde, o Bom Jesus de Braga e o santuário de Nossa Senhora dos Remédios, em Lamego, prosseguem. A afluência ao santuário aumenta e durante o século XVIII os reis foram investindo e melhorando este local de culto que abrangia toda a paisagem. Para melhorar as condições do acampamento, e com o apoio do Rei, inicia-se a construção das hospedarias que vão depois sendo construídas por privados, obedecendo às volumetrias iniciais e prolongando a fiada de casas a sul e a norte ao longo dos anos de 1715 e 1760, numa obra colectiva e vernacular que ficava sob tutela dos Círios Saloios.
A originalidade desta devoção reside no facto de juntar as 26 freguesias saloias em redor de um lugar e de uma imagem de culto e de ver a Nossa Senhora mudar de freguesia cada ano, sendo o local e o momento da entrega exactamente o cabo Espichel e a festa da Ascensão. Chegadas à praia dos Lagosteiros — que se vê lá de cima do cabo — começavam a subida pelas veredas de calhaus soltos acompanhando a imagem de Nossa Senhora montada na mula, até chegarem ao arraial. Este sacrifício era largamente recompensado com a chegada à festa, onde milhares de pessoas acorriam para três dias de descontracção e de alegria. Antes de entrar na igreja, a imagem da Senhora rodeava três vezes o arraial, abençoando-o como acontece em tantas outros locais de culto.
A chegada dos peregrinos ao Cabo Espichel podia também ser por terra, atravessando a península de Setúbal como o fazemos hoje, e tomando a estrada ventosa e deserta que leva ao cabo.
D. João V e D. José adicionaram peças de arquitectura erudita à popular dos peregrinos. A casa de água abobadada e construída num ponto alto em 1770 vem acentuar o efeito de perspectiva do arraial, prolongando-lhe o eixo e criando a tensão necessária entre o vazio do arraial, a igreja a poente e a casa da água a nascente. O eixo é depois marcado pelo cruzeiro, reforçando o efeito de praça aberta num dos lados, qual jogo barroco de perspectivas e distâncias marcadas pelo volume solto da casa de água e da sua escadaria. A composição eleva toda a simples construção das alas da hospedaria a um nível de erudição que Jonh Martin associou à fantástica praça do Capitólio na Roma de Miguel Ângelo.
Olhamos agora para este espaço com outros olhos e esperamos que saiam de lá as roulottes de vendedores do templo, para podermos perceber como um planalto no fim do mundo veio receber ao longo dos séculos a marca humana que se foi fazendo para celebrar dignamente o lugar dos deuses.
Fonte: Público

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